terça-feira, 20 de dezembro de 2011

A Internet ajuda no Vestibular

IMPÁVIDA CLAVA FORTE
Roberto Pompeu de Toledo
Quem não conhecia a cantora Vanusa, ou não se lembrava dela, agora já a conhece e tem motivos para dela não mais se esquecer. Ela fez seu triunfal ingresso, ou retorno, à fama com uma interpretação do Hino Nacional que circula amplamente na internet. Para os poucos que ainda não viram o vídeo, feito durante
uma cerimônia na Assembléia Legislativa paulista, a cantora, cuja voz arrastada, de tonalidades sonambúlicas, já fazia suspeitar de algo errado desde o início, a certa altura se atrapalha de vez e faz a melodia descasar-se sem remédio da letra, e a letra por sua vez livrar-se da sequência em que foi composta,a terra mais garrida estranhando-se com o sol do Novo Mundo, o gigante pela própria natureza irrompendo
em lugar que nunca antes frequentara. O braço forte ganhou reforços, e virou braços fortes. O berço esplêndido transmudou-se em verso esplêndido. E, na mais estonteante estocada na estabilidade das estrofes, entoou: “És belo és forte és risonho límpido se em teu formoso risonho e límpido a imagem do Cruzeiro” – assim mesmo, não só deslocando ou pulando palavras, como terminando abruptamente na
palavra “Cruzeiro”, desprovida do socorro do “resplandece”.
A performance de Vanusa passa de computador a computador para fazer rir. Este artigo tem por objetivo defendê-la. Que atire a primeira pedra quem nunca confundiu os versos de ida (“Ouviram do Ipiranga” etc.) com os da volta (“Deitado eternamente em berço esplêndido”). Que só continue a ridicularizar a cantora quem nunca removeu os raios fúlgidos para o lugar do raio vívido, ou vice-versa. Vanusa disse que
estava sob efeito de remédios, daí seus atropelos. Não há dúvida, pelo andar hesitante de seu desempenho e pelo tom resmungado da voz, de que estava fora de controle. É pena. Fosse deliberada, e interpretada com arte, sua versão do hino teria dois altos destinos. Primeiro, iria se revestir do caráter de uma variação,
interessante por ser uma espécie de comentário à composição tal qual a conhecemos. Não seria uma variante tão bela como a Grande Fantasia Triunfal sobre o Hino Nacional Brasileiro, de Gottschalk, mas teria seus encantos. Segundo, assumiria a feição de uma leitura crítica do hino. Serviria para mostrar, com a
insistente troca de palavras e de versos, como a letra é difícil, e extrairia um efeito cômico – deliberadamente cômico – das confusões que pode causar na mente de quem a entoa.
O inglês Lewis Carroll (1832-1898), autor de Alice no País das Maravilhas, criador do Chapeleiro Maluco e da festa de desaniversário, levou seu gosto pelo absurdo para a criação de um poema feito de palavras inventadas que se alternam com outras existentes, e cuja bonita sonoridade contrasta com o enigma de um significado impossível de ser alcançado. O poema chama-se Jabberwocky, e jabberwocky, em
inglês, passou a significar um texto brincalhão, composto em linguagem inventada, mas parecendo real, sonora e sem sentido. Uma tradução do Jabberwocky para o português, do poeta Augusto de Campos, começa assim: “Era briluz. As lesmolisas touvas / Roldavam e relviam nos gramilvos. / Estavam mimsicais as
pintalouvas / E os momirratos davam grilvos”.
Não. Não é que o Hino Nacional seja exatamente um jabberwocky. Não há nele palavras inventadas.
Mas a combinação dos raios fúlgidos com o penhor dessa igualdade, do impávido colosso com o florão da América e do lábaro estrelado com a clava forte tem tudo para produzir um efeito jabberwocky para a multidão de brasileiros com ouvidos destreinados para os preciosismos parnasianos. A presença de palavras familiares no meio de outras estranhas, como no jabberwocky, confere a certeza de que caminhamos num terreno conhecido – no nosso caso, a língua portuguesa; no do jabberwocky original, a língua inglesa. Ao mesmo tempo, o inalcançável significado das palavras nos transfere para um universo em que a realidade se perde numa nebulosa onírica. Já houve, e ainda deve haver, movimentos para mudar a letra do Hino Nacional. Não, por favor, não – seria uma pena. Seu caráter jabberwocky lhe cai bem. Se à sonoridade das palavras se contrapõe um misterioso significado, tanto melhor: o hino fica instigante como encantamento de fada, e impõe respeito como reza em latim. Vanusa devia aproveitar a experiência e a reconquistada fama para aprimorar uma versão cara limpa, sem voz arrastada nem tons sonambúlicos, de sua interpretação. Ela explicita como nenhuma outra o charme jabberwocky da letra de Osório Duque Estrada.
VEJA, 23 de setembro de 2009, p. 150

Nenhum comentário:

Postar um comentário